
LETRAS & LEITURAS: Entrevista de Paulo Serra a José Garrido publicada no Caderno de Artes Cultura.Sul de setembro
Em 1947, o primeiro avião da SATA a arrancar com a operação interilhas, o Açor deixa de comunicar com a torre de controlo de Santa Maria e desapareceu, com seis pessoas a bordo.
Este facto histórico inspirou o segundo romance de José Garrido. O Último Vôo do Açor partiu de uma investigação do autor e ficcionou a história de Vítor, a personagem central, a partir desse malogrado desaparecimento.
A obra, lançada recentemente, recupera este episódio trágico da aviação açoriana e cruza-o com memórias familiares, criando um romance entre a realidade e a ficção.
A intriga tem como ponto de partida uma tragédia verídica: o desaparecimento, a 5 de agosto de 1947,
do primeiro avião a operar as carreiras inter-ilhas da SATA.
A aeronave, Beechcraft UC-45B Expeditor, baptizada de “Açor”, representava o início da aviação civil regular nos Açores, marcando o começo das ligações aéreas entre as ilhas. No dia do acidente, o “Açor” descolou de São Miguel com destino a Santa Maria, transportando quatro passageiros e dois tripulantes a bordo, entre eles, o tio de José Garrido.
A escrita exigiu uma profunda investigação, nos meandros dos arquivos históricos. Garrido passou horas na Biblioteca e Arquivo Regional dos Açores e consultou documentos posteriormente divulgados pela própria SATA.
José Garrido, natural de Sintra, tem uma ligação afetiva antiga aos Açores. A sua trajetória pessoal e profissional levou-o por caminhos diversos, da ciência ao marketing, com passagem pelo sector do turismo. Estudou no Instituto Superior Técnico e, mais tarde, em Edimburgo, na Escócia, onde aprofundou os seus conhecimentos em marketing e gestão.
«Víctor regressou a São Miguel depois de várias vidas na pesca, na Terra Nova, e já não é o aventureiro que cresceu livre com o gado. Vem aprimorado, senhor de ciência e truques mais elaborados. É vigia das baleias e vê negócios, principalmente retorcidos, mais rápido que o ar quente condensado dos sopros no horizonte, e antes de qualquer outro. Um caixote com lingotes, fugindo da guerra rumo à segurança nos EUA, cai-lhe no bote. Mas não vai ser fácil desfrutar daquele presente inesperado. Com a subida da parada a vida complica-se tragicamente. Mal-entendidos com a PIDE empurram-no para um trabalho mais prosaico, no aeroporto. E poucas semanas após o início das carreiras, o Açor, o primeiro avião do serviço interilhas, deixa de responder à torre do aeroporto de Santa Maria. Na verdade, nunca chegará a responder.»
P – “O Último Vôo do Açor”, o seu segundo romance, era para ter sido o seu primeiro livro. A que se deve este compasso de espera?
R – Sim, a primeira vez que me ocorreu abraçar uma obra de fôlego – por comparação aos artigos, crónicas e pequenos contos – a história do Açor, seria, muito naturalmente, a primeira escolha. E foi. Mas bloqueei. Talvez pelo muito que tinha pensado sobre o tema, pela relação íntima, familiar, com a história, bloqueei. Tive pudor de entrar pela vida daquelas pessoas, dos malogrados ocupantes do Açor. Foi então que avançou As Estranhas Sombras da Argânia, igualmente com muito de pessoal, mas que me oferecia mais graus de liberdade, do ponto de vista criativo e afetivo.
P – O livro inspira-se, livremente, numa tragédia verídica, que foi o desaparecimento, a 5 de agosto de 1947, do primeiro avião a operar as carreiras interilhas da SATA. Existe ainda uma ligação familiar do autor a um dos tripulantes a bordo. No entanto, podemos afirmar que é sobretudo a ficção a comandar livremente o leme?
R – Correto. A solução que encontrei para ultrapassar o bloqueio foi a introdução de um personagem totalmente meu. Víctor representa uma espécie de entrada ex machina que resolve o meu drama interior. Completamente ficcional é ele quem conduz a narrativa. Às vítimas foram dedicados os poucos capítulos que antecedem o Livro Primeiro e só regressam no final para o desenlace-titanic que é, em princípio, do conhecimento dos leitores. facto histórico inspirou o segundo romance de José Garrido. O Último Vôo do Açor partiu de uma investigação do autor e ficcionou a história de Vítor, a personagem central, a partir desse malogrado desaparecimento.
A obra, lançada recentemente, recupera este episódio trágico da aviação açoriana e cruza-o com memórias familiares, criando um romance entre a realidade e a ficção.
P – “O Último Vôo do Açor”, o seu segundo romance, era para ter sido o seu primeiro livro.
A que se deve este compasso de espera?
R – Sim, a primeira vez que me ocorreu abraçar uma obra de fôlego – por comparação aos artigos,
crónicas e pequenos contos – a história do Açor, seria, muito naturalmente, a primeira escolha.
E foi. Mas bloqueei. Talvez pelo muito que tinha pensado sobre o tema, pela relação íntima,
familiar, com a história, bloqueei. Tive pudor de entrar pela vida daquelas pessoas, dos
malogrados ocupantes do Açor. Foi então que avançou As Estranhas Sombras da Argânia,
igualmente com muito de pessoal, mas que me oferecia mais graus de liberdade, do ponto de vista
criativo e afetivo.
P – Pode falar-nos um pouco do processo de pesquisa para este livro?
R – A história, com todas as omissões inerentes a um episódio trágico remoto e apesar de tudo algo paroquial, sempre fora do meu conhecimento. Quando da primeira abordagem passei algum tempo na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada. Depois, ao regressar ao tema, investiguei nos arquivos, civis e militares, nacionais em Lisboa, documentação referente a vários episódios pertinentes, da Segunda Guerra Mundial, nos arquivos da CIA e junto de investigadores internacionais. Coincidentemente, a SATA entregou, por essa altura, o seu acervo histórico à BPARPD e regressei então a Ponta Delgada para mergulhar na história dos primórdios da aviação comercial nos Açores. O relatório do acidente, da Direcção-Geral da Aeronáutica Civil, cuja obtenção, na primeira abordagem, a de há quase quinze anos, me tinha custado quase um rim e, para além dos históricos ‘o’ que algumas máquinas de escrever faziam como pequenos furos circulares, vinha redigida para privacidade, com muitas passagens cobertas a negro, passou, entretanto, a estar, na íntegra, disponível na internet…
P – Há distância de três quartos de séculos, quais são os dados que conseguiu confirmar? E aqueles que poderia desmentir?
R – O avião foi devidamente revisto em Lisboa e fez voos de teste, entre Lisboa e Porto, antes de ser desmontado e enviado para Ponta Delgada.
Os dois pilotos envolvidos na operação, pese embora a sua juventude, eram (militares) experientes, com formação em Portugal e Inglaterra. O voo sinistrado era um voo regular, devidamente calendarizado e a tripulação estava descansada. As condições meteorológicas eram ‘normais’. O relatório da DGAC refere um valor excessivo para a carga, mas parece ser um erro, o que é plausível face ao aspeto e estilo gerais do relatório. Especialistas descartaram a possibilidade de explosão.
Os escassos destroços recolhidos no mar: um coxim de pergamoide; a mala (saco) do correio de PDL para Lisboa com o selo do dia e; um chinelo de quarto feminino azul; não permitem mais ilações.
P – Há uma personagem, criada pelo autor, que serve de fio condutor à intriga. Víctor afigura-se um anti-herói peculiar, solitário, embora querido por todos, com uma vida quase monástica, e a sua vida cheia de reviravoltas parece digna de uma narrativa picaresca. Concorda?
R – Sim. Eu queria que o Víctor fosse assim mesmo. Com práticas muitas vezes condenáveis e opções morais duvidosas, mas que pudesse despertar simpatias. Eu acredito que a partir de um determinado momento, pelo menos é essa a minha experiência, os personagens de algum modo libertam-se e começam a ganhar uma voz própria. Há aquela metáfora, atribuída ao Miguel Ângelo, que o autor se limita a desbastar o excesso na pedra para expor as formas da figura emergente, não recorreria a ela, mas é uma coisa tipo mediúnica… o que eu posso dizer é que ele apareceu assim, um lazarillo das ilhas…
P – Ainda sobre o fio da narrativa e as reviravoltas, há vários momentos do livro, que lhe dão mais sal, em que o leitor avança ou recua ao longo da história, entre os anos de 1908 e 1947, sensivelmente. Como se dessa forma se tentasse estender o quadro da narrativa e ter uma noção mais abrangente da própria história que envolve a posição de Portugal e dos Açores em particular entre as guerras.
R – Sim, entendi que era importante, para dar maior densidade às personagens fornecer esse contexto. A informação sobre diferentes momentos históricos, como por exemplo o Regicídio, quando o jovem Víctor vai embarcar para a Terra Nova, ou sobre a história daquela então colónia britânica e da influência dos seus colonos, bascos e galegos, cria, acredito eu, um cenário mais espesso para a ação, para além de, e esse é um aspeto característico do meu trabalho abordar a questão da comunicação entre as pessoas. No fundo foi necessária para construir o Víctor, essa componente do tipo bildungsroman que é o Livro Primeiro. Para além disso há dois traços marcantes: a viagem lato sensu, que desloca tanto como transforma o personagem e, de igual modo, a comunicação, que se processa muito para além dos idiomas aprendidos.
P – Aspeto curioso, e talvez irónico, do livro, é como através de algumas personagens vai pontuando aspetos não só próprios dos Açores mas inclusive da Ria Formosa, como “o Tiago, um homem da Fuzeta”…
R – São a minha marca de pedreiro. Nas minhas histórias existe sempre um personagem que sai do quase anonimato por essa menção da origem. É a DOC… No primeiro romance era a Fá, uma rapariga da Culatra. Posso mesmo adiantar que no trabalho que se seguiu, ao personagem ‘algarvio’, nesse caso de Santo António de Arenilha, juntaram-se-lhe duas freiras micaelenses, de Vila Franca do Campo.
Imagino que será sempre assim.
P – Dir-se-ia que a narrativa tenta, geralmente, ser isenta. No entanto há passagens em que o autor pontualmente se denuncia com comentários e observações mais acutilantes ou pessoais…
R – Mas não é sempre assim? Até que ponto é que é possível ao autor promover essa clivagem radical e separar-se por completo da estória? Apesar dos tradicionais disclaimers o autor está sempre lá, como o Víctor que a sinopse descreve. É tudo ficção, qualquer semelhança… mas não. Eu sei que já assumi esse ‘distanciamento’, que já referi o artista que empunha o escopro e que ajuda a figura a emergir do mármore, mas também posso reconstruir a metáfora e dizer que o autor não está no escopro, mas no bloco, no mármore…
P – Por fim, não obstante o desfecho trágico do último voo do Açor, há um capítulo, temporalmente deslocado que nos remete para um final mais auspicioso relativamente às desventuras de Víctor, esse “senhor de ciência e truques mais elaborados”…
R – Sim, esse Víctor, onde já projetámos lazarillo acaba por ser a arraia-miúda de Fernão Lopes, curiosamente uma expressão que o cronista vai buscar à nossa herança árabe. Um anti-herói que é todos nós e mais prosaicamente um mau-carácter de que possamos gostar.
Como já referi esta é uma história tipo titanic. Por conseguinte o elemento surpresa está naturalmente limitado, ou na tal perspetiva da viagem que mencionei anteriormente, o caminho percorrido é mais importante do que a estação de chegada, então, entendi que fazia sentido que houvesse uma voz-off que procedesse ao encerramento. É ela que tem a última palavra…
P – Já é altura de desvelar um pouco sobre novos projetos de escrita?
R – Por que não? É sempre tempo de falar de coisas boas…
Depois de O Último Vôo do Açor eu já escrevi outro romance. No primeiro, As Estranhas Sombras da Argânia, trabalhei um período de tempo limitado, o de uma viagem pelo Sul da Argélia em 1984. Para o Açor, como já disse, optei por trabalhar com o percurso de vida do Víctor culminando com a tragédia histórica do avião da SATA. Para o próximo resolvi ir mais fundo, ao século dezassete e trabalhar o percurso de vida do personagem principal. É uma história passada na raia transmontana, que me foi inspirada pela vida de um barbeiro-cirurgião, tal e como no-la conta o respetivo processo do tribunal da Inquisição de Coimbra que pude consultar na Torre do Tombo. Estará presente a viagem, uma longa viagem que fará realçar as questões associadas à comunicação entre os homens, à respetiva matriz cultural e comunitária. Estão presentes o algarvio e as freiras micaelenses que já mencionei. Está escrito, lido e revisto. Lido em voz alta e a marinar, a ganhar espessura, a convencer-me de que supera o teste do tempo… talvez no próximo ano.
Entretanto, por causa deste desfasamento entre o tempo da escrita e o tempo da publicação, voltei a escrever. Pela primeira vez, optei por escrever sem me refugiar numa bolha da qual estão ausentes as leituras que não sejam investigação para a própria obra. Isso e questões pessoais, levaram ao prolongamento inusitado da escrita. Tenho bem mais de metade do romance escrito, mas não consigo, de momento, antecipar o momento da conclusão. Pela primeira vez penso trazer a história até (quase) à atualidade. A narrativa começa em Moçambique e passa pela Etiópia culminando em Lisboa – e posso revelar que o protagonista já desembarcou em Lisboa…
https://postal.pt/edicaopapel/entrevista-a-jose-garrido-o-ultimo-voo-do-acor-por-paulo-serra/