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Forte São Marcelo.jpg

 

O aparelho começou a desenhar uma curva larga, dengosa, antes mesmo de a paleta dos verdes e azuis, turquesas e ametistas, que ali competem pelo espaço do céu, do mar e das águas da Baía de Todos os Santos, ficar para trás. Depois, acometido por uma súbita decisão, aproou a terra, cruzou a linha de praias e restingas e pousou com preguiça no asfalto da pista. 

Ainda a tripulação manipulava o mecanismo das portas e os carrinhos rebocando as escadas deslizavam já, céleres, por entre aquela quase neblina rente ao chão. Reacção sudorífica, prazerosa, também, do asfalto húmido de alguma chuva breve e intensa pouco antes, aquecido pelos escapes do avião. O odor invadiu a cabina: afoito, curioso, primeiro carregado de querosene e outros cheiros mecânicos indefinidos, depois, doce, perfumado de especiarias várias, de alma e de terra.

Foi assim a minha chegada à Bahia. Não a primeira. Conto rapidamente pelos dedos. A primeira foi antes, muito antes, no final da adolescência, num voo oriundo de Lima, do outro lado do continente. Mas que importa? Toda a chegada à Bahia é uma primeira e desta vez eu viera acompanhado: sobre o banco, ao meu lado, vazio, (deus é pai!), estavam dois títulos de Jorge Amado. Bahia de todos os Santos, aquele guia, que traz logo na introdução uma espécie de advertência para o que se segue: Esse é bem um estranho guia, moça. Com ele não verás apenas a casca amarela e linda da laranja. Verás igualmente os gomos podres que repugnam ao paladar. Porque assim é a Bahia, mistura de beleza e sofrimento, de fartura e fome, de risos álacres e de lágrimas doloridas.

Desde então, em viagem, prefiro o e-reader que tomou o lugar da câmara fotográfica, enxotada pelo telemóvel, e me acompanha hoje, com centenas de títulos, dicionários e monografias, cobrindo qualquer detalhe que a imaginação, curiosa, me demande durante uma viagem.

Já o outro tomo… eu contei que eram dois, certo? Era mais light, não vale a pena ficar a pensar que era um adolescente de espírito já embotado, crítica acutilante, meio cínico, completamente velho-de-monchique. Ainda não, ainda não era. Esse segundo, era O sumiço da Santa. A estória de uma imagem lá de Santo Amaro da Purificação, do outro lado das águas da baía, que completada a navegação, quando chega à rampa de desembarque no cais, Santa Bárbara, ela mesma, a do Trovão, desaparece misteriosamente faltando à chamada para a exposição que a aguardava no Museu de Arte Sacra.

Aproveito para fazer uma nota mental para revisitar a igreja da Conceição da Praia. Barroco, toda feita de pedras de lioz, talvez de Pero Pinheiro, como outras, famosas, do Convento de Mafra, trazida de Portugal, pronta já para ser armada aqui.

No ónibus, público, para a cidade – sempre tive essa tendência proleta na práxis que não me abençoou na ideologia –, colei os olhos à paisagem, a que desfilava lá fora, e os ouvidos às conversas dos outros passageiros, quase todos locais.

Viajar individualmente – como a palavra só é desadequada–, tem também essa vantagem, a da imersão total.

O pessoal parecia todo ele formado em retórica velha-escola. Toda a gente discursava com uma eloquência de tribuno, sobre os temas mais frugais do quotidiano, da política, do custo de vida (não recordo bem, mas seguramente aumentava), das obras as intermináveis e as que se faziam tardar. A Bahia é isso, também, esse constante repassar da palavra com um cuidado de devota, empurrando as contas do terço ao debitar uma novena sem fim.

Salvador tem personalidade múltipla, uma espécie de heteronímia urbana. Mesmo os menos sensíveis para as almas mais discretas, encontrarão a Cidade Baixa e a Cidade Alta, unidas desde (quase) sempre por meios mecânicos, para vencer aquelas ladeiras íngremes, pontuadas por casarões e sobradões empertigados, sempre atentos aos estremecimentos das águas na baía.

O mais famoso, é o elevador Lacerda, mas igualmente icónicos e centenários existem os planos-inclinados, do Taboão e de Gonçalves, conhecido pelo "guindaste dos padres", por galgar uma rampa íngreme, aberta na encosta pelos Jesuítas.

Para o forasteiro, mesmo que constantemente consumida pela voragem do turismo, a área do Pelourinho, é a que congrega os principais pontos de interesse e que justificou a declaração, pela Unesco, de Património da Humanidade. Ali está a catedral, que até já foi longe do centro. Conta-se que o governador Tomé de Sousa terá objectado à localização ao que lhe responderam que em breve a cidade se lhe juntaria – umas palavras proféticas, aliás. E a igreja de São Francisco, prenhe de ouro, com os painéis de azulejos que são dos únicos retratos, verdadeiras polaróides, da Lisboa de antes do terramoto.

Nalgumas esquinas concentram-se baianas carregadas de colares. Nos tabuleiros trazem delícias várias. Uns acarajés reluzentes, servidos com vatapá, fritos em azeite de dendê. Mas para bem aproveitar esta cidade maravilhosa, faça-se a vénia à outra, a que o é mais reconhecidamente, convirá ao flâneur usar de prudência q.b., que estes manjares foram concebidos, com amor e muito humor, como tudo o mais na Bahia, para estômagos robustos.

Crendo escutar Dorival Caymmi, lá longe na memória, enquanto parece vibrar o ruído de um baticum longínquo: Ai, ai que saudade eu tenho da Bahia / Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia.

 

Ai, ai que saudade eu tenho da Bahia

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