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Escreve, escreve muito, pequenos artigos, grandes artigos, comentários, coisas pequenas, até um dia...
Foi talvez a primeira vez…
Seria ao lusco-fusco, já. Um casal que regressava, de um daqueles lugares na Nova Inglaterra que, aqui, crismados com engenho e ternura, ganham novos nomes, um Batefete ou Plimente, ofereceram-me com uma generosidade que muitas viagens depois, sei que não era fruto do momento, mas antes uma característica solidamente ancorada no ser destas gentes, boleia com o familiar que os aguardava para levar a casa.
Por estranho que pareça, houve um tempo em que viajávamos sem reservas, sem comunicações móveis, com informação local saborosamente antiquada, em papel bíblia, e avara de gravuras. ‘Online’ soava a uma interpelação paterna, para andar na linha, e não se usava. Creio até que, com ou sem, andávamos mais na linha, nesses tempos menos piagetianos, mas não é esse o tema de hoje.
Explicaram-me que o destino deles ficava para lá da cidade, na Praia do Almoxarife, cuja marginal precisariam atravessar de lés a lés, convidando-me por isso, a dizer onde queria sair.
O carro seguia próximo do mar, de costas para um sol, que começava já a mergulhar no atlântico, nalgum lugar remoto lá para as bandas das Flores. As primeiras casas vieram, acolhedoras, ao nosso encontro, e com elas uma pequena baía de formato caprichoso e um monte península, digamos quase-ilha, à francesa, que fica mais ajustado ao significado que se apresentava agora, além do pára-brisas, irrazoavelmente sujo, atravessado mesmo ao meio por um sino, saltitante, felizmente sem badalo.
Agora à distância, julgo que o braço se ergueu por vontade própria, dedo em riste, enquanto procurava as palavras, suaves apenas o necessário para cortar a excitação que se apoderara de mim: “É ali que eu vou ficar, naquele monte.” Omiti que aos meus olhos tanto poderia ser um cone vulcânico aposentado como um suflê desajeitadamente retirado do forno antes do tempo: “Ali!”
Desviaram-se da sua rota, insistindo em aproximar o carro do objecto do meu súbito fascínio, e deixaram-me na ponta do istmo, junto a uns edifícios em mau estado. Desculparam-se muito, mas a noite caía e ainda tinham alguns quilómetros para fazer. “Fica aqui ao pé da fábrica da baleia. Por aí acima” – e apontaram o estradão em macadame – “só o forte em ruínas e a capela de Nossa Senhora da Guia.”
Eu já tinha desistido de disfarçar o sorriso apatetado que se me tinha apossado da cara. Que lugar espectacular.
Mochila às costas segui pelo caminho que contornava o vulcão – seria uma indignidade continuar a chamar-lhe suflê mal-enjorcado – continuava a ver graças a uma esteira de luz, projectada pela lua que atravessava a baía maior, onde se anichava a cidade a norte de onde me encontrava. Breve, encontrei uma zona plana, coberta de uma relva farfalhuda que preenchia os espaços entre os restos das muralhas arruinadas.
Foi num santiamém que montei a tenda, de frente para o mar – fascinado pelo tamanho irreal de uma lua que parecia querer partilhar a própria tenda – e adormeci.
Se esperavam a introdução, aqui, de uma diatribe mais ou menos filosófica, literária talvez, exculpo-me já, sempre fui assim, adormecer é um acto de magia – instantâneo.
Sonhei, muito, como não? Com o Canal, aos meus pés. O do Mau Tempo. A Margarida Dulmo, o tio Roberto, o João Garcia, e até o avô, que eu adivinhava a espreitar, frente às vidraças do quarto, no Pasteleiro – algures atrás de mim – enfocando os olhos pequeninos, sempre um pouco raiados e meio baços, cismando que conseguiria ver dali, como eu, as vinhas, no Pico, entre Candelária e São Mateus, as que conservara com uma teimosia notável.
Despertei, sobressaltado, graças à inusitada sonoridade de uma fanfarra que executava uma alegre marcha militar. Dei graças por ter sobre a cabeça um tecto de pano e não de alvenaria. O espanto foi total. O sol, estava ainda a coberto da massa enorme do Pico, mesmo à minha frente, recortado com um traço perfeito, suavemente esfumado, como os olhos de alguma beldade das mil e uma noites – e isto que ainda era a primeira!
Em baixo a cidade apresentava-se, belíssima, refulgindo graças a meia dúzia de raios de sol que, do lado do Canal de São Jorge, já conseguiam acariciar, com suavidade, o casario, e no primeiro plano, pronta para atracar na Horta, a Sagres, sempre elegante, velas enfunadas nos seus três mastros, galhardamente embandeirada em arco, que chegava para o início da Semana do Mar.
Os sinos das igrejas da cidade, começaram a bater as sete. Teimosamente desacertados, como se cada um quisesse exibir a sua sonoridade própria sem necessidade de ensaios, sem a orientação de um maestro. De novo recordei o livro. A aflição de Margarida, nas vinhas, as chamas no Granel – debrucei-me um pouco, estaria logo aqui abaixo – tentando contá-las: Angústias, 4; Matriz, 6; Conceição, 8.
Ali em baixo, as águas do Canal empenhavam-se contra a costa, com um ruído de vassoura percutindo a bateria “a maré vazia cardava o calhau suavemente”.
Hoje, não se viaja sem smartphone, sem garrafinha de água, sem factor de protecção 30. A este lugar não venhais sem um exemplar de Mau Tempo no Canal, nem partais sem ler o conto: Mulher de Porto Pim
Julgo que foi nesse dia que me apaixonei pela Horta – coisas de adolescente…
Saudações desde o país 98! Depois de 4 voos e 13 fusos horários, como era de esperar, a cabeça sente-se mesmo como se estivesse de pernas para o ar 😀 mas até aí já a gente sabia 😂 Auckland, na ilha do norte, uma cidade rasgada por dois mares ...
A manhã apresenta-se fantástica. A grande vantagem destes climas é que a liberalidade com que curtos períodos de chuviscos limpam a paisagem cria um ambiente fresco, claro e purificado, o resto do dia... neste autocarro, o serviço directo para Waitomo - a terra das minhocas fosforescentes 😂 - começa como se fosse uma excursão 😰. O motorista, uma voz be barítono que ainda não deu um segundo de descanso às cordas vocais, vai-me metralhando os ouvidos com um manancial de trivialidades de fazer corar as redes sociais. Vai soltando, com aquele sotaque único em que muitas vogais soam obstipadas, pérolas como: esse fruto é o kiwi, à parte peluda acastanhada chamamos a casca, há também um pássaro kiwi e, chamamo-nos kiwis a nós próprios (sic)!
O aparelho começou a desenhar uma curva larga, dengosa, antes mesmo de a paleta dos verdes e azuis, turquesas e ametistas, que ali competem pelo espaço do céu, do mar e das águas da Baía de Todos os Santos, ficar para trás. Depois, acometido por uma súbita decisão, aproou a terra, cruzou a linha de praias e restingas e pousou com preguiça no asfalto da pista.
Ainda a tripulação manipulava o mecanismo das portas e os carrinhos rebocando as escadas deslizavam já, céleres, por entre aquela quase neblina rente ao chão. Reacção sudorífica, prazerosa, também, do asfalto húmido de alguma chuva breve e intensa pouco antes, aquecido pelos escapes do avião. O odor invadiu a cabina: afoito, curioso, primeiro carregado de querosene e outros cheiros mecânicos indefinidos, depois, doce, perfumado de especiarias várias, de alma e de terra.
Foi assim a minha chegada à Bahia. Não a primeira. Conto rapidamente pelos dedos. A primeira foi antes, muito antes, no final da adolescência, num voo oriundo de Lima, do outro lado do continente. Mas que importa? Toda a chegada à Bahia é uma primeira e desta vez eu viera acompanhado: sobre o banco, ao meu lado, vazio, (deus é pai!), estavam dois títulos de Jorge Amado. Bahia de todos os Santos, aquele guia, que traz logo na introdução uma espécie de advertência para o que se segue: Esse é bem um estranho guia, moça. Com ele não verás apenas a casca amarela e linda da laranja. Verás igualmente os gomos podres que repugnam ao paladar. Porque assim é a Bahia, mistura de beleza e sofrimento, de fartura e fome, de risos álacres e de lágrimas doloridas.
Desde então, em viagem, prefiro o e-reader que tomou o lugar da câmara fotográfica, enxotada pelo telemóvel, e me acompanha hoje, com centenas de títulos, dicionários e monografias, cobrindo qualquer detalhe que a imaginação, curiosa, me demande durante uma viagem.
Já o outro tomo… eu contei que eram dois, certo? Era mais light, não vale a pena ficar a pensar que era um adolescente de espírito já embotado, crítica acutilante, meio cínico, completamente velho-de-monchique. Ainda não, ainda não era. Esse segundo, era O sumiço da Santa. A estória de uma imagem lá de Santo Amaro da Purificação, do outro lado das águas da baía, que completada a navegação, quando chega à rampa de desembarque no cais, Santa Bárbara, ela mesma, a do Trovão, desaparece misteriosamente faltando à chamada para a exposição que a aguardava no Museu de Arte Sacra.
Aproveito para fazer uma nota mental para revisitar a igreja da Conceição da Praia. Barroco, toda feita de pedras de lioz, talvez de Pero Pinheiro, como outras, famosas, do Convento de Mafra, trazida de Portugal, pronta já para ser armada aqui.
No ónibus, público, para a cidade – sempre tive essa tendência proleta na práxis que não me abençoou na ideologia –, colei os olhos à paisagem, a que desfilava lá fora, e os ouvidos às conversas dos outros passageiros, quase todos locais.
Viajar individualmente – como a palavra só é desadequada–, tem também essa vantagem, a da imersão total.
O pessoal parecia todo ele formado em retórica velha-escola. Toda a gente discursava com uma eloquência de tribuno, sobre os temas mais frugais do quotidiano, da política, do custo de vida (não recordo bem, mas seguramente aumentava), das obras as intermináveis e as que se faziam tardar. A Bahia é isso, também, esse constante repassar da palavra com um cuidado de devota, empurrando as contas do terço ao debitar uma novena sem fim.
Salvador tem personalidade múltipla, uma espécie de heteronímia urbana. Mesmo os menos sensíveis para as almas mais discretas, encontrarão a Cidade Baixa e a Cidade Alta, unidas desde (quase) sempre por meios mecânicos, para vencer aquelas ladeiras íngremes, pontuadas por casarões e sobradões empertigados, sempre atentos aos estremecimentos das águas na baía.
O mais famoso, é o elevador Lacerda, mas igualmente icónicos e centenários existem os planos-inclinados, do Taboão e de Gonçalves, conhecido pelo "guindaste dos padres", por galgar uma rampa íngreme, aberta na encosta pelos Jesuítas.
Para o forasteiro, mesmo que constantemente consumida pela voragem do turismo, a área do Pelourinho, é a que congrega os principais pontos de interesse e que justificou a declaração, pela Unesco, de Património da Humanidade. Ali está a catedral, que até já foi longe do centro. Conta-se que o governador Tomé de Sousa terá objectado à localização ao que lhe responderam que em breve a cidade se lhe juntaria – umas palavras proféticas, aliás. E a igreja de São Francisco, prenhe de ouro, com os painéis de azulejos que são dos únicos retratos, verdadeiras polaróides, da Lisboa de antes do terramoto.
Nalgumas esquinas concentram-se baianas carregadas de colares. Nos tabuleiros trazem delícias várias. Uns acarajés reluzentes, servidos com vatapá, fritos em azeite de dendê. Mas para bem aproveitar esta cidade maravilhosa, faça-se a vénia à outra, a que o é mais reconhecidamente, convirá ao flâneur usar de prudência q.b., que estes manjares foram concebidos, com amor e muito humor, como tudo o mais na Bahia, para estômagos robustos.
Crendo escutar Dorival Caymmi, lá longe na memória, enquanto parece vibrar o ruído de um baticum longínquo: Ai, ai que saudade eu tenho da Bahia / Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia.
Depois de vários anos, seis, sete, reli A boneca de Kokoschka.
Sublime. Como é que se pode escrever tão bem, com tanto(s) sentimento(s)?
É um texto tão prístino, e tão belo. Um texto que flui para o leitor, sem esforço, de uma forma orgânica. Prenhe de beleza, grotesco e pungente ao mesmo tempo.
É verdade que a partir de um certo ponto a estória parece descambar, despistar-se: metáfora de vida as linhas rectas tornam-se insólitas cornucópias…
Faço uma nota para relê-lo dentro de uns anos. Será (duplamente) uma prova de vida.
Como o personagem diz, mesmo a chegar ao final: “Encontramo-nos no infinito, como fazem as rectas paralelas”.
Faltam-me estrelas…
Peguei neste (segundo) romance do José Carlos (Leya 2021) que nunca tinha lido - eu sei, é uma vergonha.
Peguei nele porque no Caminho de Santiago que percorro no momento em que escrevo estas linhas atravessaria os territórios de que se ocupa e também, porque o JCB é demonstradamente muito talentoso, para além de pessoa de uma generosidade notável: o livro só podia ser (muito) bom.
Pois, ainda não cruzei o Douro e já o terminei. Há leituras que são assim.
O livro não é fácil, vem de um tempo em que os autores se concentravam no seu talento, imaginação e criatividade. Um tempo em que as regras apócrifas designadas de "escrita criativa" (oximoro bizarro), não tinham contaminado a arte da escrita - ou, deverei talvez dizer, a indústria do livro.
As frases são polidas, esmeriladas, construídas com destreza, com mestria, também com dedicação e amor, tenho a certeza.
"Porque precisamos sempre de uma outra geografia. De criar uma distância entre o que éramos e o que nos estava destinado ser."
"Olhou os companheiros de mesa como se estivesse a olhá-los pela primeira vez ou como se pela primeira vez o seu olhar estivesse disponível para ver além deles."
A intimidade com o leitor "Só faltava calhar-nos aqui um narrador, menos preocupado com o estilo do que com os conteúdos, que se desse à maçada de preencher os intervalos da narrativa."
"A ideia de ficção era incompreensível num lugar que raramente se ergueu acima das raízes das árvores de fruto ou dos juncos das margens dos rios e que viveu sempre tão próximo da concretude de uma trave mestra, de uma mesa ou um lagar de pedra, dos arames das vinhas, do solo de saibro das adegas, de uma aduela, do afiche de um andor de festa."
Ao longo dos capítulos, que se sucedem numa lógica peculiar, a trama desenvolve-se provando que não são necessários facilitismos para criar uma estória doce e trágica, uma estória que prende, que embevece.
Os lugares, inominados, são-no o suficiente para localizar num lugar si Barroso, equidistante de Friúme e Vilarinho de Samardã, polos de Camilo, e também Torga. Está tudo dito.
Ide! Correi a lê-lo!
Para além de uma escrita de riqueza e profundidade imbatíveis, Camilo, tem uma outra característica fascinante: tudo está firmemente ancorado em experiências, relacionamentos e lugares. Não só podemos procurar os locais, como também participar das polémicas, vivas, que se levantam entre freguesias, sobre o verdadeiro cenário de uma cena ou a naturalidade de um personagem. É por isso que, como poucos, se adequa à nossa filosofia de viagem e (re)descobrir as suas referências é um prazer imenso.
Munidos de um exemplar de A Brasileira de Prazins, o último grande romance do autor, fomos recentemente a Seide. São Miguel de Seide, foi a pequena freguesia a uma escassa légua de Famalicão, onde viveu as últimas quase três décadas da vida.
É um casarão rural, discreto até, comparado com muitas destas casas senhoriais que pontuam a paisagem rural do Minho. Depois de várias vicissitudes, e um incêndio, foi reconstruída com cuidado e rigor.
É, como hoje soe dizer-se, uma visita para experienciar. O piso térreo, que foi adega, apresenta uma interessante exposição-memória sobre o autor, com comentários de figuras de topo da literatura Peninsular. Mas é subindo aos andares que conseguimos a verdadeira imersão na intimidade de Camilo e já agora, de Ana Plácido, mulher memorável e também ela escritora.
Esta não foi a primeira casa de Camilo. Na infância, órfão, viveu com familiares em Vila Real e também em Vilarinho de Samardã – freguesia duriense tão especial que atraiu também a pena de Torga. Com o primeiro casamento, aos 16 anos, Camilo, estabelece-se em Friúme na margem esquerda do Tâmega, em Ribeira de Pena. Fica aí uma pequena casa museu, com loja de dois cómodos e um piso superior com a cozinha, o quarto do casal e uma daquelas varandas de madeira que apinocam as fachadas das casas tradicionais da região.
Foi aqui que colocou Maria Moisés, criança que sobrevive às águas do rio após a queda fatal da mãe que escorregou ao atravessar umas poldras limosas. Salva milagrosamente e recolhida a uma casa abastada, ergue-se a partir daqui como personagem central.
O casamento dura pouco tempo e o autor – deverei dizer o nosso herói? – segue um périplo de paixões, Viseu, Caminha, Fafe, Porto, solteiras, casadas e freiras, até que conhece Ana Plácido que pouco depois casaria com um homem que fizera fortuna no Brasil e o feliz proprietário desta casa de campo.
Se o parágrafo anterior nos remete para A Brasileira de Prazins, a continuação da estória, o processo por adultério que levará ambos à Cadeia da Relação, no Porto, é o Amor de Perdição, porventura sua obra mais famosa, escrita em apenas 15 dias. Absolvidos, passam a viver juntos e, quando, pouco depois, Ana Plácido enviúva, o filho herda esta casa de Seide.
Estamos agora, depois do indispensável enquadramento, municiados para subir a escada e visitar os espaços do piso superior. A pequena sala, com o harmónio que Ana tocava, a cozinha, com a descomunal chaminé e fumeiro, os quartos, a sala de jantar e a grande sala de visitas com janelas para dois lados.
De uma delas, ao lado do relógio de parede, o da botica, descrito de forma primorosa logo na abertura de Eusébio Macário, podemos ver por onde se inicia o trilho da Cangosta do Estêvão e adivinhar, ao passar a Ponte Pedrinha, na margem direita do rio Pele, a Casa de Passelada. Tem interesse limitado quando nos acercamos, mas fascinante deste ponto de vista, quando a reconhecemos como a casa do José Dias, o infeliz amado de A Brasileira de Prazins. Continuando para Landim, quando o trilho deixa a vizinhança do rio, aparece a Quinta do Pregal, onde terá vivido e falecido a mulher que foi a inspiração para Marta, a filha de lavrador, que o pai força a casar com o tio rico, regressado de Pernambuco, carregado com cabedais suficientes para arrematar mais de uma dúzia de boas quintas.
Dando costas à janela, próxima já da outra parede, está a cadeira de baloiço. Camilo via cada vez pior – já não via. O médico, um amigo, acabara de lhe recomendar, para a visão perdida, água do Gerês. Camilo, que nas várias vidas que viveu ao longos dos seus 65 anos, também andou pela medicina, não precisou de mais explicações. Mal teria Ana Plácido acabado de se despedir do facultativo (era esta a palavra da sua preferência), não empunhou a caneta, inútil, mas o revólver… se não se distraíram com os últimos parágrafos, estamos ainda na sala de visitas, e foi aqui mesmo que se realizou o seu velório.
Escreveu “O homem que ama é um tolo sublime”. Apetece perguntar: e o que não?
Foto: Representação artística, pungente, da vida, da sociedade, dos homens: os 'artistas' vão-se substituindo no palco, – e que outro mais apropriado do que o palco do Teatro de Marionetas, salvaguardado o respeito, enorme, pelos titereiros. Saídos de cena e descartados, os farsantes das rábulas anteriores, jazem sob a escultura.
Cuba: a utopia em carne viva.
[...] Cá está, o país 99.
Havana amanheceu sob uma neblina muito suave que acrescenta outra pátina à beleza cansada dos edifícios.
Aqui, o icónico Hotel Nacional, onde no ano de 46 o célebre gangster Lucky Luciano organizou a conferência entre a Máfia e a Cosa Nostra, para regular o crime organizado nos EUA.
...de manhãzinha fui dar um passeio com o cão.
O tempo de verão que tanto se fez tardar, chegou em força.
Senti um toque, arrastado mas suave, no ombro direito, e uma corrente de ar, frente à testa.
No ramo de uma alfarrobeira, a não mais de dois metros de mim, pousou uma coruja, grande, como uma galinha jovem.
O pescoço fez duas daquelas rotações acrobáticas.
Tolo, levei a mão ao telemóvel, olhei-o para que desbloqueasse.
Voltei a olhar a coruja - que já lá não estava.
Será que também me estou a tornar imbecil?
Lá diz o adágio: antes um pássaro que observar do que dois para fotografar.
Não terei, naturalmente, competência para analisar a escrita de Camilo, isso sim, que ninguém questione a validação do apreço que ela me suscita: Camilo escreve maravilhosamente bem.
Era um tempo em que a escrita não se sustentava em oximoros nem precisava adjectivação. Ao mesmo tempo erudito, muito erudito, e popular. Engraçado como no século XIX a cultura popular era tão erudita. Gente notável como Camilo escrevia textos curtos em entregas periódicas em diferentes publicações, jornais e revistas; compositores enchiam salas de ópera com um público que era apreciador autêntico e capaz de arrotar, mas não de tossir persistentemente ao longo da récita 😉🤣. Recordo ter lido algures, que numa ocasião, a Cavalleria rusticana de Mascagni esteve em cena em dúzias de teatros italianos em simultâneo.
Voltando à Brasileira de Prazins supostamente o pretexto, se não o tema, deste apontamento:
Camilo, neste último grande romance, abandona o movimento romântico e assume as características do realismo. Se o fez numa perspectiva apenas de aderir à nova corrente ou por crítica ironia e sarcasmo, já é mais difícil de saber – pelo menos se nos ativermos apenas à obra, no momento da sua publicação.
O romance é uma tessitura de duas estórias entrelaçadas uma na outra. A tragédia (muito glosada) do amor contrariado – Marta é mais ou menos forçada a fazer um casamento de conveniência com um tio regressado rico, do Pernambuco e, a complexa trama política dos conflitos, muito populares, que emergiram um pouco por todo o país na sequência do embate entre liberais e miguelistas. O eterno messianismo dos portugueses é-nos mostrado aqui de uma forma muito curiosa. Não vemos os ‘portugueses dos brandos costumes’, mas antes um povo aguerrido, violento mesmo, não desdenhando uma boa arruaça.
Para ler e reler…
Foi de um fôlego. Faz-me pensar naqueles memes imbecis que começam, invariavelmente, com qualquer coisa do género “com que idade descobriste que as toalhas de papel ao lado do lavatório são para enxugares as mãos?”.
Eu: como foi possível deixar passar tantos anos, desde a publicação sem ter lido este livro?
Que prémio mais bem merecido!
A escrita de João Pinto Coelho é sublime. Vem imbuída de uma beleza e de uma elegância superlativas que apimenta com vocábulos incomuns, esquecidos nas páginas dos dicionários – daqueles que encontrávamos fascinados quando nos perdíamos folheando em papel, largos minutos depois de encontrado o significado procurado.
Há uma parte de mim, reconheço, que se pergunta sempre, ao ler JPC, como também a Joana Bértholo e escassos outros: será que lhes ocorrem estas palavras com naturalidade ou antes as escolhem pela poesia, pela sonoridade, ritmo e métrica e as integram nos parágrafos como um marchetado de madrepérola?
Esta é uma estória sobre uma coisa terrível. Uma coisa que tentamos sempre negar: a verdadeira natureza da humanidade.
JPC criou um mosaico de uma beleza inefável, puxando com artes de bonecreiro e muita magia os fios que fazem ganhar vida os três personagens fundamentais desta história, depois, salpicou-a generosamente com dezenas de outras personagens, quase sempre apenas nomes, profissão ou lugar de origem, para realçar a universalidade da tragédia que nos desvela. Todos estamos lá. É desnecessário entrar em detalhes: todos.
Respiguei algumas frases pela originalidade e beleza, pela maneira como me sensibilizaram:
“O livreiro valia-se então das trivialidades que restavam, o que é natural quando a vida e o homem se vão despedindo por mútuo consentimento.”
“O shtetl era um buraco, um pedaço de floresta sujo de humanidade, a mais vulgar das maldições.”
“Porque é que hei-de saber logo o fim da história? Tenho tanto direito a divertir-me como o leitor.”
“Só quero escrever e acabar de escrever, é uma chatice se a morte me apanha com um livro a meio.”
Ide. Correi a lê-lo!
[20.02.2025]